Para melhor se entender a expressão Deus, em espírito e matéria,
que usei no capítulo anterior, – e melhor se entender também o problema
da experiência de Deus no tempo – julgo necessário tratar dos
princípios da cosmogonia espírita, na qual se integra a teoria da génese e a
formação do espírito. O contra-senso da afirmação bíblica de que Deus
criou o mundo do nada, que tanto trabalho deu aos teólogos, é explicado
na revelação espírita pela teoria da Trindade Universal. Deus, o
Ser Absoluto, é a fonte de toda a Criação. Existindo essa fonte
solitária, é logicamente necessário admitir-se um meio em que ela existia. Esse
meio, que seria o espaço vazio, foi considerado o nada. Para tratar
do Absoluto num plano relativo, como o nosso, é preciso usar expressões
relativas.
A concepção espírita do
mundo não admite a existência do nada. O Universo é pleno – é uma plenitude –
não havendo nele nenhuma possibilidade de vácuo. Essa teoria espírita
da plenitude está hoje a ser confirmada pela pesquisa científica do
Cosmos. As regiões siderais que poderíamos julgar vazias mostram-se
como campos de forças, carregadas de energias que escapam aos nossos sentidos. Esse
pré-universo energético seria o que Buda definiu como o mundo sempre existente,
que nunca foi criado. Pitágoras, na sua filosofia matemática, considerou Deus
como o número 1 que desencadeou a década. O UM, número primeiro, existia imóvel
e solitário no Inefável (naquilo que para nós seria o nada) e nesse caso o nada
seria a imobilidade absoluta. Houve em certo momento cósmico, não se pode saber
como nem porquê, um estremecimento do número 1, que assim produziu o 2 e a
seguir os demais números até ao 10. Completando-se a década, tivemos o
Todo, a Criação se fizera por si mesma, o Universo surgira e com ele o tempo. É claro que
não dispomos de recursos para investigar as origens primeiras e, essas teorias
não passam de tentativas de explicação lógica, destinadas a proporcionar-nos
uma base alegórica ou hipotética para uma possível concepção do mistério da
Criação.
O Espiritismo sustenta a possibilidade de conhecermos a
verdade a respeito, quando houvermos desenvolvido as potencialidades espirituais
que nos elevarão acima
da condição humana. Enquanto não chegarmos lá, essas hipóteses devem servir
para mostrar-nos que dispomos de capacidade para ir além dos limites do
pensamento dialéctico, além do conhecimento indutivo baseado
no jogo dos contrastes.
Assim sendo, não podemos aceitar a alegoria bíblica da
Criação à letra, como verdade revelada, nem contestá-la orgulhosamente com a
arrogância materialista. Na posição do crente temos a ingenuidade e na
posição do materialista temos a arrogância do homem, esse pedacinho de fermento
pensante, como dizia o Lobo do Mar de Jack London. O
espiritualismo simplório e o materialismo atrevido são os dois pólos da
estupidez humana. O bom-senso, que é a regra de ouro do Espiritismo,
nos livra da estupidez e oferece-nos a possibilidade de chegar à sabedoria sem
muito barulho e disputas inúteis.
Partindo do pressuposto de que o mundo deve ter uma
origem e aceitando a ideia de que foi criado por Deus – pois assim o afirmam
todos os Espíritos Superiores que se referem a este assunto e que revelam uma
sabedoria superior à nossa –, o Espiritismo admite
que a fonte inicial é uma inteligência cósmica. Mas porque uma
inteligência e não apenas um centro de forças casualmente aglutinadas no caos
primitivo? Porque o Universo se mostra organizado inteligentemente em todas as
suas dimensões, até onde podemos observá-lo. Seria ilógico, absurdo, supormos
que essa inteligência da estrutura universal, que se manifesta em minúcias
ainda inacessíveis à pesquisa científica, desde as partículas atómicas até aos
genes biológicos e aos seus códigos admiráveis, seja o resultado de um simples
acaso. Nenhuma cabeça bem-pensante poderia admitir isso. A teoria espírita –
teoria e não hipótese, pois que já provou a sua validade através de todas as
pesquisas possíveis – pode ser resumida neste axioma doutrinário: Não
há efeito inteligente sem causa inteligente e, a grandeza do efeito corresponde
à grandeza da causa.
Colocando assim o problema, a sua equação torna-se clara.
O Espiritismo elabora-a
em termos dialécticos: a fonte inicial, Deus, existindo no meio do inefável,
constituído de matéria dispersa no espaço, emite o seu pensamento criador que
aglutina e estrutura a matéria. Temos assim a Trindade Universal que as
religiões apresentam de maneira antropomórfica.
Essa trindade não
é formada de pessoas, mas de substâncias regidas por uma possível Inteligência,
constituindo-se assim: Deus, Espírito e Matéria.
O espírito que a constitui não é uma entidade
definida, mas o pensamento de Deus que se expande no Cosmos sobre a
forma de substância. Essa substância espiritual penetra o oceano de matéria
rarefeita, dispersa e, aglutina as suas partículas, estruturando-as para
a formação das coisas e
dos seres.
Da tese espiritual e da antítese material resulta a síntese do real, do mundo
criado por um poder inteligente.
Qual a razão de ser, o objectivo, a finalidade e o
sentido da Criação? O Espiritismo admite
que não podemos conhecer tudo isso no nosso actual estágio de desenvolvimento,
mas podemos, através da nossa inteligência humana,
indagar, perquirir, pesquisar e chegar a resultados logicamente possíveis. Os
dados científicos da Geologia, por exemplo, mostram-nos a Terra como o resultado
de um longo processo de formação, no qual é evidente a intenção de atingir um
tipo de perfeição em todas as coisas e todos os seres. As
formas imprecisas e grotescas das primeiras idades do planeta se vão
aprimorando ao longo do tempo, numa sucessão nítida de fases de elaboração
caprichosa. Os dados da Antropologia revelam-nos o aperfeiçoamento do homem
nas civilizações sucessivas, a partir das selvas. Os dados da Psicologia desvendam-nos
os anseios da alma humana, na busca incessante de transcendência,
de superação do seu condicionamento orgânico-material. Os dados da Estética revelam-nos
o anseio de beleza, perfeição e equilíbrio que
rege o desenvolvimento individual e colectivo, o indivíduo e a espécie.
Gustave Geley, no seu livro Do Inconsciente ao
Consciente, propõe-nos uma visão dialéctica do mundo em que as coisas se
transformam em seres e
estes avançam em direcção à consciência. É
a mesma visão da teoria dialéctica de Hegel. Oliver Lodge considera
o homem actual como um processo em desenvolvimento. O Existencialismo, nas suas
várias escolas, encara o homem como um projecto, um vector que se lança na
existência em busca da transcendência. Para Sartre,
o homem frustra-se nessa busca e se nadifica na morte, se reduz ao nada.
Para Heidegger,
o homem realiza-se no trajecto existencial e se completa na morte. Para Jaspers, o
homem consegue transcender-se em dois sentidos: o horizontal, na relação
social, e o vertical, na busca de Deus. Para Léon Denis,
todo o processo de transformação se explica por esta frase genial: A
alma dorme na pedra, sonha no vegetal, agita-se no animal e acorda no homem. Para Kardec, a
transcendência humana leva-nos ao plano da angelitude, pois os anjos nada
mais são do que espíritos que superaram as condições inferiores da
humanidade.
Temos assim o Universo, com a multiplicidade dos seus
mundos rolantes no espaço sideral, dos seus sóis e das suas galáxias, como um
fluxo permanente de forças em transformação incessante, objectivando a formação dos seres e a elevação destes
a condições divinas. Só a hipótese de Sartre admite a
inutilidade como finalidade universal.
Os Espíritos Superiores, nas suas comunicações, desmentem
e rejeitam essa hipótese negativa, sustentando a natureza teleológica do
Universo. Consideram a Criação como um gigantesco processo que só pode
ser definido corno o fiat na sua fase inicial, quando a Mente
Suprema emite o seu pensamento para unir essa emanação do seu espírito à
matéria dispersa. Depois desse instante criador desencadeia-se o tempo e é
nele que o processo criador vai desenvolver-se lentamente através dos milénios. E
a superioridade desses
Espíritos não é avaliada por medidas ou métodos místicos, mas por verificações
racionais. Os Espíritos Superiores não ensinam apenas através de ideias, mas
também de factos. Provam, através da produção dos fenómenos
paranormais, que possuem uma ciência muito superior à nossa, um
conhecimento do espírito e da matéria que estamos longe de atingir e uma
compreensão de Deus que supera em muito as nossas interpretações antropomórficas
da Inteligência Criadora. Além disso, as suas previsões se
confirmam de maneira rigorosa, demonstrando que possuem recursos de
futurologia muito mais avançados e seguros que os nossos. As suas proposições
são ainda relacionadas com os nossos conhecimentos, completando-se na
medida em que o nosso adiantamento permita que nos falem a respeito sem
provocar dúvidas ou confusões na nossa mente.
A relação de Deus com o Universo não é apresentada em
termos de mistério, mas de realidade verificável.
Na Terra, o homem representa o ponto culminante do processo evolutivo. A
criação do homem à imagem e semelhança de Deus explica-se em termos espirituais.
Porque o homem é o único ser terreno que possui mente criadora, pensamento
produtivo e contínuo, psiquismo refinado e complexo, capacidade de percepção e
de intuição que
lhe permitem penetrar na essência das coisas, ultrapassando a aparência
ilusória. Feito assim, como um reflexo da divindade, o homem liga-se a Deus não
apenas pelos laços do acto criador, mas também por afinidade psíquica e
espiritual. É um herdeiro de Deus e co-herdeiro de Cristo, como
escreveu Paulo, que se prepara para entrar na herança do futuro.
A relação de Deus com o homem começa,
portanto, muito antes que ele se defina como criatura humana. Desde o
momento em que o pensamento de Deus se une à matéria para modelá-la e,
nas fases subsequentes, em que espírito e matéria se fundem nas formas
substanciais de que tratou Aristóteles,
a relação de Deus com o homem desenvolve-se em progressão constante. Quando se
estrutura a consciência humana no ser em evolução, a marca de Deus ali está
presente, na lei de adoração que
é o sentimento inato de sua filiação divina e se manifestará no sentimento
religioso, base de todas as experiências religiosas da Humanidade. Temos de
dividir o conceito da experiência de Deus, em que tanto se apoiam
as religiões formalistas, em dois tipos bem definidos de experiência: a
de Deus, que começa no fiat, como elemento ontogenético (elemento
constitutivo da própria génese do homem) e a religiosa, que corresponde às
tentativas de uma tomada de consciência de Deus através de formulações
religiosas por meio de rituais, instituição de igrejas, sistemática litúrgica e
sacramental, organização clerical, ordenações e elaboração dogmática. Confundir
a experiência genética de Deus com a experiência formal da vivência religiosa é
característica do pensamento superficial, que facilmente se acomoda no jogo
aparencial das instituições humanas. Deus, espírito e matéria formam
o triângulo fundamental de toda a realidade. A omnipresença de
Deus não implica o mistério de uma pessoa sobrenatural que se dispersa nas
coisas, mas a participação do pensamento criador
de Deus em tudo, desde a formação do átomo até
à formação da consciência. Compreendendo que o espírito e
a matéria são
os dois elementos estruturais da realidade, compreendemos que Deus esteja
presente em todas as partículas do Universo, como o poder criador, omnisciente,
controlador e mantenedor de todo o equilíbrio universal. Deus
penetra o mundo e está nele, como a seiva no vegetal, mas não se reduz a ele,
pois permanece inalterável como a fonte de que tudo emanou.
A Ciência actual está a chegar rapidamente a essa
constatação. Dizia o físico nuclear Arthur
Compton, no seu ensaio sobre o lugar do homem no Universo, que descobrimos
a energia por trás
da matéria, mas já começamos a perceber que por trás da energia existe algo
mais, que parece ser o pensamento.
A unidade, a coerência, a perfeição dessa
concepção espírita do
mundo e do homem passam despercebidos no tumultuar das teorias absurdas que,
como escreveu Charles
Richet, atravancam o
caminho da nossa Ciência. Mas parece já próximo o momento em que o caminho se
tornará livre.
Não há lugar, nessa concepção admirável, para o equívoco da contradição Espiritualismo-Materialismo
em que até agora nos debatemos. Espírito e matéria aparecem
sempre unidos, interligados e interactuantes, na dialéctica da Criação. E a negação de
Deus, como observou Descartes,
é tão absurda como pretendermos tirar o Sol do Sistema Solar.
/…
José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo
5 – Deus, Espírito e Matéria, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo
do Anjo, lápis e giz de Alexandre
Cabanel).
