(III de III)
A natureza moral da terapêutica espírita decorre da moral
de Jesus, pura e natural, desprovida dos aparatos, rituais e ordenações
antinaturais forjadas pelos teólogos. Por isso a terapia espírita, como a de
Jesus, não se funda em práticas sacrificiais, em exorcismos demoníacos, em
condenações da função genésica do homem e da mulher, mas na liberdade regida
pelos princípios básicos da consciência humana, onde – e somente nela – estão
inscritas as verdadeiras leis morais da humanidade.
Os actos naturais, exigidos pela própria continuidade da espécie humana,
capitulados como pecados veniais e capitais nas tabelas de preços das
indulgências, que provocaram a revolta de Lutero,
não são considerados como crimes contra a Divindade. Crimes são os abusos e as
perversões desses actos, que nivelam o homem aos animais. Mas a
educação é o antídoto desses desvios – a educação natural de Rousseau,
desenvolvida nas suas técnicas por Pestalozzi e
pelo seu discípulo e sucessor Allan Kardec.
Pestalozzi era deísta e universalista, educador por excelência,
o homo faber da educação nos séculos XVIII e XIX, mas
faltava-lhe a vocação pedagógica, que sobrava a Kardec. Em Kardec havia o doublé de
filósofo e cientista, as duas vocações necessárias ao fazer pedagógico, que
implica a reflexão global sobre a educação e a complementação experimental da
pesquisa científica. Mergulhado nesses dois planos da realidade educativa,
Kardec ansiava pela descoberta da essência do homem, da sua natureza última e
do seu destino. Entendia, como declarou tantas vezes, que sem esse conhecimento
não podíamos conhecer realmente o educando e dar-lhe, por uma educação
adequada, o pleno desenvolvimento das suas potencialidades.
Entregou-se primeiro às pesquisas do magnetismo (i),
que lhe revelava um novo aspecto da natureza humana e, mais tarde, perante a
insistência de amigos, ao estudo e à pesquisa dos fenómenos paranormais,
que na época explodiam por toda a parte. Foi esse o caminho que o levou ao
Espiritismo, num verdadeiro acto de amor, para usarmos a expressão de Hubert.
Emparelhou-se casualmente com a revolução teológica de Kierkegaard,
que fundava na Dinamarca, sem querer, a Filosofia Existencial. A sua tendência
platónica levou-o a sonhar com a República de Platão em
termos universais, através da educação integral do homem, no
desenvolvimento de toda a sua perfectibilidade possível, como queria Kant e
como querem ainda hoje os neokantianos do realismo crítico. Essa a relação
sensível existente entre a pedagogia de Hubert e Kerchensteiner com
a Pedagogia Espírita entranhada na obra kardeciana. O princípio grego
da unidade orgânica do Universo decorre de uma visão lógica superior. A
Psicologia Infantil mostra-nos que a percepção da criança nas suas primeiras
fases do desenvolvimento é fragmentária. O mesmo acontece com os povos
primitivos que se isolam no seu torrão e na tribo com a arrogância de únicos
habitantes do mundo. Essa incapacidade natural de uma concepção ampla
gera o orgulho do exclusivismo racista, da xenofobia, das cidades e
das civilizações muradas do geocentrismo e do antropocentrismo. Só o
desenvolvimento da civilização, à maneira do desenvolvimento orgânico e da
sociabilidade na criança, abre perspectivas para a mente fechada. Os gregos
passaram também por esse processo, mas, auxiliados pela sua posição geográfica
e por uma capacidade de abstracção mental superior, mostraram-se
mais avançados, conseguindo imaginar o mundo como uma unidade orgânica e viva,
como vemos na sua teoria do ilosoísmo (ii).
Do outro lado do mundo estavam os celtas, que foram capazes de
imaginar o universo hipostásico dos círculos superpostos de Anunf,
o círculo infernal; Abred, o círculo das reencarnações; Gwinfid,
o círculo divino ou Morada de Deus. Bastaria esses dois exemplos para
mostrar a necessidade das migrações entre os mundos habitados no cosmos segundo
o princípio espírita.
O aparecimento do indivíduo em Atenas não decorreu do comércio do Mar Egeu, mas
do único milagre grego que se pode admitir: a avançada capacidade grega de
abstracção.
Sócrates,
que partilhou da leviandade dos sofistas, abandonou-os ao perceber o vazio das
suas teorias e fundou a Filosofia Moral. O moralismo socrático preparou, à
distância da corriola rabínica dos sofistas judeus o advento do Cristianismo. Kardec
reconheceu essa função precursora de Sócrates e Platão e comparou o estágio
evolutivo dos gregos ao dos celtas, que Aristóteles considerou
o único povo filósofo do mundo. Note-se bem: um povo filósofo, que os romanos
conquistaram para se apoderarem da sua sabedoria. Esse apanhado sucinto
e fragmentário dos mundos grego e celta mostra a razão da superioridade da
moral espírita, que Kardec desenvolveu na França do iluminismo e da liberdade.
Curar e educar são funções conjugadas do
homem na luta pela sua transcendência. Por isso, Allan Kardec as
reuniu nas suas primeiras actividades em Paris, tendo exercido medicina, como
assinala André Moreil, confirmando as informações de Henry Sausse, primeiro
biógrafo de Kardec e contemporâneo do mestre. Moreil menciona o período em que
Kardec exerceu medicina em Paris. Ficou assim anulada a dúvida
que se levantou sobre as suas actividades médicas. Por outro lado, é pacífico
que ele leccionou ciências médicas em Paris. Era uma inteligência omnímoda e
se empenhava com afinco na decifração dos mistérios do homem. A sua maior
realização foi a criação da Ciência Espírita. Ela lhe custou
muito caro, pois teve de enfrentar sozinho uma batalha sem tréguas com todas as
forças culturais, religiosas, políticas e sociais do seu tempo. O seu
senso e a sua moralidade comprovam-se actualmente na volumosa obra que deixou
como o alicerce inabalável da Ciência e da Filosofia Espírita.
/…
(i) mais tarde chamado, hipnotismo...
(ii) pré socrática, materialista ou ilosoísta...
José Herculano Pires, Ciência Espírita e as suas implicações
terapêuticas, 3 Natureza Moral da Terapia Espírita (III deIII), 10º fragmento
desta obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar
de névoa, pintura de Caspar
David Friedrich)